Escolhemos para este episódio do podcast Um Pouco Mais de Azul a palavra Assuada. Isso deu pretexto a Rita Taborda Duarte para abordar a política enquanto ameaça e para nos levar à exposição “Intimidades em Fuga”, uma proposta de Nan Golding por estes dias no CCB.
Francisco Louçã trata da assuada criada no parlamento pela censura do Chega e da assuada de Trump para colonizar a Ucrânia, não esquecendo os dados estatísticos norte-americanos sobre a redução da vida sexual dos jovens.
Fernando Alves procura outros caminhos para sustentar que Perdigão perdeu a pena.
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Em baixo, pode ler três excertos do episódio desta semana.
De como Perdigão perdeu a pena
Fernando Alves
Diz-se de certas bancadas que são, não tanto pelo cheiro, mas pela zoada, balcões de vozes escamadas. Nesses recantos mal-afamados, os mais censuráveis poltrões censuram tudo e todos, afinando o tropel de vozes, esganiçadas ou cavernosas, pelo tom do macho alfa. O macho alfa parece a todo o passo perguntar “quantos são?”, mas passeia-se de guarda-costas. Tudo o que venha à rede da dita bancada vem mal-amanhado, mas serve para a caldeirada. Com muito picante. E muito esturro.
Se fossem peixes, nem Santo António lhes faria um sermão. Por motivos vários, um dos quais o grande Vieira sublinha no início da perlenga. São os peixes a pior das audiências, não obstante duas notáveis qualidades: ouvem e não falam. Talvez o padre Vieira desconhecesse a existência dos chamados peixes roncadores. Existem, sim. E o nome por que são conhecidos deve-se ao alto barulho que provocam quando esfregam os dentes.
Tomemos que sejam peixes, os de tal bancada, e que tenham aprendido a falar esfregando os dentes como os roncadores. São peixes, tomemos que sim, mesmo quando dão à barbatana com a elegância de taberneiros. Uns tão feios como o peixe bolha, outros assemelhados ao tubarão-cobra, espécie de fósseis vivos, outros de barba e lábios vermelhos como o peixe-morcego. Não há dentes como os do peixe-víbora. Fora as piranhas em que a bancada é farta. As sereias, claro, são para despistar.
Está, entretanto, a dado passo da algazarra, o macho alfa de olhos no chão, na fila das orcas. A cena ocorre durante a mais recente operação de exprobação, dita moção de censura, em que o tropel da peixeirada enfrentou o Neptuno de serviço. Logo os censores caíram na rede que lançavam, tantas eram, na bancada, as duvidosas courelas debaixo de água, tantas as águas turvas.
Assim foi a censura censurada. Se não se tratasse de peixeirada, poderíamos ousar legenda sibilina, aliás glosada em versão mais bucólica, com recurso a tosquiadores tosquiados. Fiquemo-nos com a versão do Camões: “Perdigão perdeu a pena / Não há mal que lhe não venha”. Na verdade, não me lembro de ter visto o macho alfa tão vergado aos ricochetes de um debate.
A palavra desta edição, esta palavra Assuada, nem às postas serve parábola de peixe, graúdo ou carapau de corrida, salvo se assada no forno.
Ainda mexe, entretanto, o perdigão, embora já depenado. Nada que ao Camões escapasse, mesmo desfalcado de um olho. Daí a sentença final da rima camoniana, ao perdigão depenado: “Lança no fogo mais lenha: /não há mal que lhe não venha”.
O macho da perdiz calha mais em assuadas: é do foro venatório. Puxa o tumulto da canzoada, o tropel de vozes e disparos. Talvez por isso, Aquilino dá pederneira à palavra em vários dos seus livros, do Malhadinhas às Terras do Demo. E, claro, em A Arte da Caça, onde nos lembra que “era de ordinário no clero que a cinegética rural ia recrutar as suas boas espingardas”.
Aquilino era um bom caçador. Disparava palavras certeiras com gramática à prova de bala. Vamos seguir uma das pistas de A Arte da Caça: “Para fazerem dar o bate cu a um coelho não havia como esses padres do fim do século XIX. Nem um goal do Coluna”.
Este é o momento em que perco de vista a assuada censória de há dias e aplaudo a surpreendente referência do mestre àquele a quem chamaram Monstro Sagrado, capitão da selecção aquando do terceiro lugar do Mundial de 66, para engulho dos racistas da época.
Esta posta do rabo da frase nos leva de novo à bancada onde a peixeirada reúne várias espécies de arruaceiros. A cada frase incendiária do macho alfa se amotinam, façanhudos. Não por tamanhos, por aparência vertebrada ou invertebrada. Afinal, também a mosca zune no vidro o mais alto que pode.
É como se a cada frase pisassem o que nomeiam. Deviam ter atacadores nos lábios em vez de calcanhares bocais. Escoiceiam o verbo como se tivessem ferraduras no céu da boca. Cada locução estala como um azorrague. Ou um tagante, palavra que roubo ao Camilo, de uma passagem mais cruel de A Doida do Candal e que sacode as moscas atraídas pela peixeirada.
Assuada: a política enquanto ameaça e Nan Goldin, que faz do sussurro voz
Rita Taborda Duarte
A palavra do dia, no podcast de hoje, sempre à procura de um pouco que seja de azul, é assuada. E logo ribomba o ruído da vozearia alarve da turba a silenciar a reflexão, o pensamento ou, sequer, palavra articulada que faça adivinhar uma centelha de humanidade, que esteja além do grunhir e do rosnar. A assuada talvez não persuada (passe-se a rima), mas assusta. E, na verdade, poucas formas de persuasão haverá mais eficazes do que o medo. É aí, onde o ruído, o rugido, o esgar das vozes em tumulto se sobrepõem à palavra, que o humano se desgasta… O ruído de fundo aumenta de volume, até que deixa de ser ruído de fundo, para ocupar em pleno toda a cena política. Nos antípodas da assuada e da vozearia, que não deixam pensar e tentam paralisar o agir, gostaria de lembrar a exposição, em exibição no CCB até final de Agosto, em torno da fotógrafa americana, Nan Goldin, com curadoria de Nuria Enguita. Ali, sob o mote das «intimidades em fuga», se juntam mais de 30 artistas e fotógrafos, num diálogo de vozes que não se sobrepõem em assuada, mas que antes convidam à reflexão, que não deixa de ser também política (na verdade o que é que não é político?). Mas, já regressarei a Goldin. Primeiro a assuada desarrazoada que nos tem atacado os tímpanos e que é preciso combater, fazer calar.
Não penso só, mas também, na desgraçadíssima figura dos quarenta e nove desordeiros e mais um, que têm feito do parlamento a sua taberna ou o seu curral. E falo dos meliantes e desordeiros do parlamento, usando as palavras nos sentidos próprios; não creio fazer uma hipérbole: parece-me antes estar perto, pasme-se, de um eufemismo. Este modo de agir, fazendo da assuada, o único discurso, não significa somente um modo de ser ou estar; é um defeito e grave, sim, mas também é essencialmente feitio, consciente e consequente. O que quero dizer é que não é só forma. É o próprio conteúdo: um modo simbólico de exibir desprezo pelas leis, pela ética, pelos princípios, que até agora pensávamos partilhados, mesmo com aqueles que estão para lá do horizonte do nosso espectro político. Os que regem naturalmente a vida pela lógica da intimidação, da ameaça, da injúria, da hostilidade (seja no trânsito, no local de trabalho ou no seio familiar) querem arredar a vida política, a coisa pública, do debate; procura-se insinuar e validar (para mais tarde impor), na vida privada, como na sociedade, como na política, a ofensa e a ameaça como modo de acção. Faz-se, então, a equivalência entre a força da razão e razão da força. Vamos ser francos: Haverá, afinal, algo mais persuasivo do que uma ameaça? E algo mais convincente do que o medo? As boçalidades bullys, a que vimos assistindo na Assembleia é uma duplicação grosseira da estratégia, que põe Elon Musk e Milei em cima do mesmo palco, exibindo, em espectáculo grotesco, uma motosserra entre mãos: por sua vez, metáfora, literalmente ruidosa, do email enviado aos funcionários públicos americanos (assim, distraidamente se faz um golpe de estado institucional). E quando vemos e ouvimos Trump nestes primeiros meses de legislatura, percebemos que ali temos o resumo, sequer passado a limpo, da invasão do capitólio em Janeiro de 2021.
Parece-me o mundo, afinal, um teatro do avesso; as cenas de bastidores são agora encenadas em palco. O barulho de fundo sobe de tom, torna-se intenso e assoma à superfície, calando outras vozes, discursos, ideias. Uma moção de censura torna-se uma assuada, sem conteúdo, um projecto de lei perde-se em vozeada inconsequente. Objectivo atingido, o de transformar todo o discurso em ruído.
Volto, então, à exposição de Nan Goldin, «Fugas da intimidade», em exibição no CCB; ali, a intimidade torna-se política, quando cruza o pensamento artístico e faz ouvir a voz do pensamento, ao arrepio do burburinho assuado. No ano passado (bem a propósito se poderia recuperá-lo este ano) saiu um filme documentário chamado «Toda a beleza é carnificina». O documentário relatava o activismo da fotógrafa americana, que denunciava o império farmacêutico dos Sackler, mecenas de vários museus, mas responsável pela dependência de opiáceos (alguns resultaram em morte) de doentes do foro psicológico. Na exposição «Intimidades em fuga», em exibição no CCB, mais de trinta artistas são postos em confronto dialogado, com uma sucessão de fotografias de Nan Goldin, que desenha um percurso, quase uma narrativa, pela sala de exposições: aí exibem-se fotografias de pessoas reais mostradas na sua interioridade íntima, uma sucessão de fotografias, datadas dos anos setenta e oitenta que exibem narrativas da intimidade, e por isso, identidade, da cultura queer em Nova Iorque. A partir das 126 fotografias de Goldin, desenvolve-se, em constelações várias, todo um firmamento de relações com 35 outros artistas, que atravessam diferentes géneros artísticos – da fotografia, ao desenho, vídeo, instalação ou pintura – que cruzam autores de diferentes latitudes e gerações. As teias relacionais e dialogantes vão sendo urdidas, multiplicando o pensamento que vai falando mais alto que a barbárie. Ali, a intimidade sai fora da norma e expande-se por vários tópicos, desde o corpo, às questões coloniais, e de poder político, às próprias metamorfoses de sujeito, à medida que a sociedade o aglutina. Paula Rego, Helena Almeida, mas também Brauner, Breton, são só alguns exemplos que multiplicam o modo como a intimidade se mostra em fuga. Lê-se na folha de sala as palavras da curadora da exposição, Nuria Enguita, «A intimidade está fortemente ligada à reflexão e à consciência, à subjectividade, à autonarração e à autointerpretação. A actividade artística […] como uma expressão do sujeito, naquilo que nele há de mais específico, singular e íntimo. Colocar a intimidade em evidência, dizê-la, expressá-la, expôr os seus hábitos é habitar a própria vida; é dar voz ao sussurro e não ao discurso. Tomar consciência da vida (em conjunto) e procurar reconhecer e compreender subjectividades alheias (em conjunto) é partilhar uma vulnerabilidade: é termo-nos e apoiarmo-nos uns aos outros.». Repito «colocar a intimidade em evidência» partilhável, e fazê-lo, acrescento, por intermédio de arte, resistindo pelo discurso artístico, é «dar voz ao sussurro e não ao discurso». Reformulo e reinterpreto: é fazer do sussurro um discurso com voz, e tão forte que abafe a assuada cretina que ensurdece o mundo, provando que, agora, como dantes, toda a arte é política e resistência. Ou como escreveu Szymborska, no poema «Filhos da época» tão certeiro antes, como agora:
A exploração do Congo
Francisco Louçã
Como Leopoldo, rei dos Belgas no final do século XIX, Donald Trump olha para a Ucrânia como o seu quintão privado, que poderá partilhar com os seus amigos, sobretudo os superoligarcas que o rodeiam na Casa Branca. O Congo era propriedade privada de Leopoldo, que a explorava a seu bel-prazer. A produção intensiva da borracha deixou um rastro de mortos, mas Sua Majestade enriqueceu. Será diferente o modo de Trump encarar as riquezas da Ucrânia? Pois não é. As terras raras são os recursos necessários para as empresas de comunicação e Trump garante-lhes a pilhagem. Tudo bons rapazes.
Os números foram a primeira enunciação deste plano de extracção. Afirmou Trump: devem-nos 500 mil milhões. Na verdade, as despesas e investimento norte-americano na guerra foram 175 mil milhões, dos quais 70 destinados a compras a empresas norte-americanas. Foram anunciados como empréstimos e donativos, mas agora a Casa Branca exige o quíntuplo do gasto efectivo. Ficou a lição sobre o generoso apoio dos Estados Unidos.
Prosseguiu o plano e Trump explicou que queria metade dos lucros da venda desses minerais raros, do valor de futuras concessões e do benefício obtido pela operação dos portos e outras infra-estruturas. Leopoldo tinha tudo, Trump quer metade do quíntuplo e, como seria de esperar, Zelensky aceitou no dia seguinte a prometer defender o seu país do saque. De pouco contaram as promessas europeias a propósito do risco da Ucrânia nas mãos do seu “antigo aliado”, na expressão do nosso presidente – não serviu de nada, a capitulação foi mais rápida do que o ultimato. A Blackrock, que já se tinha destacado na gestão da invasão do Iraque, agora volta ao ataque. O mundo é pequeno.
A aliança entre Trump e Putin é a outra face desta moeda e, matreiro, o dirigente russo oferece a empresas norte-americanas uma via de negócio para os recursos do seu país. A paz entre oligarcas é o resultado desta manobra. E as potências europeias fazem reuniões uma atrás da outra. Será que nos habituaremos a isto?