Roubando Jesus

Roubando Jesus


Resolvi ir à procura de Jesus há poucos dias, quando passei por sua caverna e vi sua mãe Maria, seu pai José, os três reis magos, o lobo e os dois bezerros olhando confusos para a manjedoura vazia. Jesus foi carregado nos braços de um homem desconhecido em 27 de dezembro de 2024, quando tinha apenas dois dias de vida. Um jovem vestindo camisa branca e calça jeans entrou pelo portão lateral da igreja funerária às 11h10, caminhou com firmeza em direção ao presépio, envolveu o menino Jesus em um pano e saiu com ele nos braços. Cerca de um mês depois, o presépio permaneceu como o ladrão o deixou, sem Jesus e a Sagrada Família, petrificados.

Esta não é a primeira vez que Jesus deixa as pessoas esperando pelo seu retorno, mas agora nem mesmo o padre parece acreditar no milagre. Fui ver o padre no domingo à noite. Ao entrar no imponente templo neogótico, aos pés da Consolação, encontrei-o no escritório. Alessandro Borbon, de quem já vi dois ou três sermões excelentes, embora um tanto técnicos, é um jovem alto, de palavras pensadas e sem malícia espiritual. “Ele não deveria mais estar com quem o levou”, disse ele com um pouco de tristeza.

As primeiras pistas indicavam que Jesus estava exposto na região do Vale do Anhangabau. Duvido. Anhangabaú é muito aberto a vendas ilícitas, embora neste caso do próprio Filho de Deus. Assim como acontece com os celulares roubados pela turma dos motociclistas, o destino de Jesus pode ser o óbvio: a velha Caracolândia, perto da Estação da Luz, onde tudo está quebrando. Será simbólico. Nenhum lugar de São Paulo precisa mais dos dias de Cafarnaum, onde Jesus faz sucessivos milagres, do que a Terra dos Mortos-Vivos, uma terra de ninguém que o governo já tentou remover com o lançamento de bombas. Mas logo a primeira fonte que ouvi me disse para desistir. Jesus não poderia estar lá.

O senhor Edmilson Teixeira, 63 anos, que tem diabetes e câncer de próstata, mora nas calçadas há cinco anos. Ele veio de dentro da Bahia depois de fazer coisas anti-cristãs lá. “O que você quer dizer com eles roubaram Jesus?” Ele abriu os olhos. Expliquei a ele e ele continuou apavorado. “Só pode ser o diabo.” Eu disse que iria à terra dos mortos para receber notícias, mas ele desaconselhou, falando com calma: “Se você vier para a Cracolândia pedindo por Jesus, eles vão te assediar. E outra: Ninguém tem coragem de trocar Jesus. para a Cracolândia. Eles têm medo de ir para o Inferno.”

Minha próxima tentativa foi com Pierre, o gaúcho, um filósofo de rua que mora perto de Cobán. “Eles vão pedir cerca de R$ 10 mil para devolver”, disse. Comecei a entender que Jesus não foi mais roubado, mas sim arrebatado. Pierre olhou para a barraca ao lado dele e, envergonhado, pediu que lhe desse uma Coca-Cola e um pacote de biscoitos. Dado, o preço era informação. Depois apontou para um jovem próximo a ele e disse: Ele sabe. “Ele” é Everton, único nome fictício deste texto, um conhecido que resgatei de uma briga feia há um ano, quando o vi amarrado com um jovem visivelmente desorientado pelo vício. Assim que perguntei se ele sabia sobre o Jesus roubado, ele disse: “O homem que o roubou veio hoje”.

Everton assistiu à cena do assalto pela televisão e identificou o culpado. Comovido pela dor de uma mulher católica que morava nas proximidades, ele pediu ao ladrão que devolvesse Jesus usando um argumento espiritualmente plausível: “Irmão, sua vida não vale nada e você ainda rouba Jesus, cara?” Já era tarde. O ladrão, um tanto arrependido, disse que um “irmão” do Glicério havia pegado Jesus pelas mãos. Não se sabe se este “irmão” fez isso para se vender ou se manteve Jesus consigo. Não fui e não irei no Glicério. A polícia não deveria fazer isso. Desisti de encontrar Jesus assim que voltei ao presépio. A imagem da sua ausência é mágica. Não estar lá não leva você a lugar nenhum. Jesus não pertence aos sacerdotes, aos templos, às mulheres abençoadas ou aos jornalistas. Não foi de Maria nem de José. Perdido, preferiu cercar-se daqueles que não vemos, negamos ou desprezamos. Algo me diz que está exatamente onde deveria estar.



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