Para a socióloga e historiadora María Alice Rezende de Carvalho, que em 2012 lançou o livro “Irineu Marinho – Imprensa e Cidade” (Globo Livros), o jornalista soube “ler” as mudanças na sociedade do início do século XX e liderou uma grande revolução. Um movimento de renovação do ofício, da linguagem ao modelo de negócio. Ela ressalta ainda que O GLOBO, fundado em 29 de julho de 1925, num país que passava por uma crise econômica e política instável, foi um ato de coragem de Irino. O jornalista faleceu poucas semanas após a inauguração do novo periódico comemorativo do centenário de sua fundação, mas seu legado de imaginação e inovação, imortalizado pelos filhos e netos, fez história.
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No seu livro você destaca que Irino Marinho é uma figura de seu tempo. Homem de valores tradicionais, mas atento ao mundo e que deixou uma marca de inovação nas suas ações. Como essa marca se traduziu na criação do A Noite, primeiro jornal que fundou, e do GLOBO? O que cada um de nós trouxe que estava “conversando” com a imprensa na época?
Sim, do ponto de vista dos seus valores, talvez se possa dizer que Irino Marinho era um homem tradicional: levava a sério as amizades, era leal aos amigos e leal à família. Seus colegas de trabalho diziam que ele tinha bom humor e era um trabalhador incansável, mas sabia fazer uma pausa para tomar um café no Largo da Carioca, quando trocavam piadas ou comentários rápidos sobre o trabalho. Mas quando se tratava de suas empresas, Irino não era convencional. Foi um inovador determinado: investiu na profissionalização do jornalismo, na “invenção” do repórter, na substituição das técnicas de composição e impressão, na contratação de cartunistas e fotógrafos que modernizaram a linguagem do jornal e criaram o “Noite .” Popular diariamente.
Com a morte de Irino, surgiram suas pesquisas sobre o profissionalismo do jornalismo e a personalidade do próprio jornalista, e então ele passou a ser associado às figuras boêmias, que trabalhavam nas redações como segundo emprego. Esta pesquisa é visual?
Irino testemunhou a transformação da imprensa que veio do império em outra coisa, uma nova imprensa. No Império, os jornais eram um “braço” da política e não havia uma distinção clara entre opinião partidária e notícias; Eram campos ligeiramente mistos. Nesse sentido, os jornais eram o bastião de intelectuais, literatos, boêmios e pessoas que escreviam sobre personalidades e interesses da corte. Irino soube naquele momento “ler” o país e as mudanças que ocorriam na sociedade. Incluindo o crescimento de segmentos médios formados por jovens instruídos em busca de caminhos profissionais. Daí a facilidade com que o movimento de renovação se estabeleceu: renovando a linguagem jornalística e confundindo as fronteiras entre “factos” e “ficção”. Renovar o estilo de negócios, atraindo anunciantes que possam suprir a necessidade de investimentos; Renovar as estratégias de vendas unitárias do jornal e, finalmente, renovar a identidade de quem atua na área de jornalismo, que passou a focar na personalidade do repórter. Irino não mudou apenas de jornal; Acelerou as transformações no jornalismo de sua época, sendo um dos fundadores do Círculo dos Repórteres e, posteriormente, da Associação Brasileira de Imprensa (ABI).
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O Nuit era um jornal de cidadãos, um exemplo de jornalismo da época centrado no ze-bufo, nota no livro. Irineu leva a proposta ao GLOBO e vai além. Na primeira página do jornal de 29 de julho de 2025, aparece a foto do buraco que O GLOBO foi mandado cobrir porque o serviço público não agiu. Você diria que se esta não fosse uma inovação do Irino, ajudou a fomentar e fortalecer essa parceria com a comunidade?
A necessidade de manter um empreendimento tão ousado e caro como o jornalismo independente, sem apoio estatal, requer um apoio significativo de leitores fiéis. Isso ajudou a direcionar o jornal de Irino Marinho para temas relacionados ao cotidiano dos leitores e às condições de vida no Rio de Janeiro. A rua foi o seu principal espaço de observação e surgiram muitos relatos de problemas que afectavam os cidadãos. Quase sempre foram foco de campanhas promovidas pelo jornal para melhorar as condições de vida, de trabalho e de moradia no “Zé Bufo”.
Retirado de A Noite, Irino lança novo jornal em apenas quatro meses. Você acha que foi um evento excepcional, apesar de sua vasta experiência na área?
Acredito que qualquer iniciativa da envergadura que Irino Marinho imaginou e implementou quando saiu de A Nuit – a fundação de um novo jornal diário – representaria um enorme desafio para qualquer empresário. Especialmente no contexto em que O GLOBO foi criado, o país atravessa momentos difíceis, com uma economia abalada pela crise da década de 1920 e uma política instável, com o surgimento de elites divididas e de movimentos sociais e trabalhistas. O novo jornal foi criado por vontade – apenas com uma velha impressora rotativa que pertencia ao Exército Britânico, sem saber em que equipa de profissionais contar. A coragem, neste caso, entrou em conflito com o bom senso, mas triunfou.
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O apreço de Irino Marinho pela música, literatura e cinema, sem falar na paixão pelo Carnaval, refletiu-se diretamente nos jornais e nas empresas que criou. Foi também amigo e apoiador de figuras proeminentes das artes no Brasil, incluindo o escritor João do Río. Como o papel da cultura ajuda a contar essa história?
O Rio tem uma história antiga e contínua de vida popular ativa, tecendo de baixo para cima uma verdadeira rede de historiadores, dramaturgos, artistas, músicos e jornalistas. Uma análise da relação de A Noite com seu público aponta para a vitalidade com que diversas instituições populares – ruas, praças, terreiros, rodas de samba, bandas, organizações sindicais e associações carnavalescas, entre outras – responderam às transformações da cidade. Irino Marinho buscava constantemente atingir esse público, pois também era fã de música popular, de filmes de suspense, de músicos braca unzi, de intelectuais negros e daqueles que tinham pouco compromisso com a cultura oficial da capital da república. A própria criação de A Noite indica a ligação de Irino a um tipo de setor empresarial muito distante daquele que dominava a economia de exportação agrícola brasileira. Para realizar seu sonho contou com a cooperação de empresários do entretenimento, como Celestino da Silva, dono do Teatro Apolo, que doou parte importante dos recursos necessários à criação do jornal.
EUReneau faleceu logo após fundar O GLOBO, mas seu espírito inovador foi seguido pelos filhos na união do novo jornal. Como você acha que ele teria navegado nas próximas décadas, com mudanças cada vez mais rápidas na tecnologia e na sociedade?
Os exercícios de “ciência do futuro” são sempre arriscados. No caso de Irino Marinho é mais difícil. Porque embora fosse ágil e muito eficaz em suas decisões estratégicas, o Brasil mudaria muito na década de 1930, com a concorrência acirrada de jornais que permitiam aportes de capital estrangeiro, rápidas transformações tecnológicas… enfim, com o jornalismo se tornando um negócio encomendado por grandes capitalistas ligados a interesses políticos. Acredito que o antigo sistema de gestão empresarial e direção intelectual praticado por Irino chegará ao fim na década de 1930, e é difícil imaginar o que poderá acontecer, mas o empresário associado às lutas liberais contra a tirania enfrentaria seus piores momentos sob as ditaduras que governaram o país. Eu conhecia o Brasil.
Qual o papel da imprensa na construção da identidade nacional nas primeiras décadas do século XX? Os jornais do Rio, então capital federal, conseguiram transmitir essa imagem?
As antigas províncias que se tornaram estados sob a república experimentaram caminhos diferentes, em grande parte ditados pelo sucesso ou fracasso das suas economias regionais. Além disso, como mencionei, a capital da República era muito diferente social e culturalmente de outras cidades, especialmente São Paulo, que dominavam o cenário econômico da República Velha. The Night criou uma relação com o mundo popular sem paralelo na época.
Qual o principal legado que Irino Marinho deixou para o jornalismo brasileiro?
Tomando o exemplo de A Noite, acredito que o seu legado tem sido a lealdade entre os pares, a imaginação e a inovação duradouras e a comunicação democrática.