Madalena ora sente raiva, ora sente pena do ex-marido | Violência doméstica

Madalena ora sente raiva, ora sente pena do ex-marido | Violência doméstica


Parece haver um efeito de surpresa na dor que Madalena ainda está a arrumar na cabeça.

“Fiz tudo pelos meus filhos. Se calhar, fiz mal. Havia de ter saído mais cedo de casa. Acho que eles agora é que são felizes.”

Madalena ora sente raiva, ora sente pena
do ex-marido

Este é o segundo trabalho da série “Quando o agressor de violência doméstica é PSP ou GNR” que, nas próximas semanas, lhe trará vozes de várias vítimas e um olhar cruzado sobre o que mudou nos últimos 50 anos em matéria de violência doméstica e resposta policial em Portugal. Este capítulo contém linguagem susceptível de ferir a sensibilidade dos leitores



Pode ser muito eficaz a manipulação de um agressor. Ainda agora, apesar do choque, a violência não condiz com o que Madalena gosta de pensar que o ex-marido é. “Depois de tudo o que passei, acho que ainda gosto dele.”

Atribui-lhe várias qualidades. “Ele fazia o comer. Qualquer coisa que a gente pedisse, ele era capaz de dar. Fazia surpresas. Às vezes, comprava viagens. Tínhamos uma vida linda. Tínhamos carros. Tínhamos casa. Tínhamos uma quinta. Tínhamos tudo. E tudo acabou…”

Põe-se a pensar na história de vida dele à procura de respostas. “Quando começámos a namorar, não falava com o pai dele. Disse-me que o pai dele sempre o tratou mal. Não sei se lhe batia, se não lhe ligava. Eu disse-lhe: ‘Olha, espero que nunca faças isso aos teus filhos.’ Mas… fez.”

A explicação estará na personalidade, na transmissão intergeracional de violência, na exposição directa e indirecta a situações de violência, na cultura masculina dominante, no consumo excessivo de bebidas alcoólicas? Madalena coloca mais fichas nesta última hipótese.

Os excessos


Ainda não tinha ingressado na Guarda Nacional Republicana quando se casaram. “Um dia cheguei a casa, tinha um papel escrito a dizer: ‘Fui a Lisboa concorrer à GNR, porque hoje é o último dia.’ Inscreveu-se, fez o curso, passou, foi chamado.” E Madalena despediu-se do seu trabalho para o acompanhar nos postos onde ia sendo colocado.

Nos primeiros três anos, ela ocupou-se só da casa e do filho, que acabara de nascer. “E a vida corria bem. Vínhamos cá de mês a mês. Íamos para os meus pais, porque ainda não tínhamos casa.” Mal conseguiu ser colocado na terra, instalaram-se. Compraram casa. Tiveram outra criança.

Com o tempo, o homem ganhou outros hábitos. “Começou a ter muitos amigos. Chegava a casa às tantas. Uns dias, ia fazer o jantar. Outros dias, ia a uma concentração de motas. Já não ia tanto connosco para a minha mãe. Deixámos de ir lá dormir. Só lá íamos ao domingo.”


Podiam amargar, aqueles

domingos.


“Quando ele bebia, eu chegava

a ficar três e quatro horas com

os meus filhos dentro do carro,

à espera dele, e ele no café,

com os amigos.”


“Depois do jantar, em vez de ir

direitinho da casa dos

meus pais para nossa casa,

parava no café.”

– Vamos!

– Espera aí!

– Olha que os teus filhos
amanhã têm aulas. 

– Eles têm de se
habituar a tudo. 


Madalena desesperava a olhar

para os filhos, a cair de sono

ou já adormecidos

no banco de trás.


“Chegávamos a casa à uma, duas, três, quatro da manhã. Na segunda-feira de manhã, os garotos tinham de se levantar cedo. Era assim. Mas era só quando estava já com o copo. Sério ele ia direitinho para casa.”

“Com o copo”, as viagens de regresso a casa eram invariavelmente tensas. “Se começássemos a falar em qualquer coisa, havia discussão. Às vezes, nem conversávamos. Ficávamos calados.” “Sem o copo”, tudo fluía.

O filho como vítima


Não era costume bater-lhe. “Tinha-me batido uma vez e tinha pedido desculpa. Deu-me uma bofetada. O meu filho era pequeno e assistiu a tudo.” Recorrente era a agressão verbal. “Às vezes, tratava-me mal de boca. Sempre me tratou mal de boca. ‘Sóis uma filha da puta.’ ‘Sóis um monte de esterco! Essas coisas assim. Nem me quero lembrar.”

Ao filho, sim, bateu várias vezes. “Se tivesse negativa, era logo.” Madalena foi falar com os professores. Sempre que lhe entregavam um teste, o rapaz ficava nervoso. Adivinhando castigo paterno, bloqueava. “Puseram-no mais à vontade e ele melhorou um bocadito.”

Lembra-se de tentar chamar o então marido à razão e de enterrar o protesto na submissão. “Não íamos a lado nenhum porque ele dizia logo: ‘Se não estás bem, muda-te.’ E eu então deixava.” Ainda falou com a sogra. “Eu tinha pena do miúdo. Ela dizia-me: ‘Ai, deixa lá isso. Depois passa.”

Na filha, não. Na filha, não batia. Com a filha, o militar “era um querido”. A rapariga também não facilitava com as notas. “Ela já tinha medo. Porque o irmão contou-lhe as histórias todas.” Até àquele dia.

Os pares de lambadas


Naquele sábado, Madalena foi visitar o pai dela, internado numa estrutura residencial para idosos, e seguiu para casa da mãe dela com a filha. O filho não estava. Já não coabitava consigo, mas com a namorada.

O militar ia participar numa concentração motard. Devia juntar-se à família à tarde, mas só chegou à noite. Já tinham jantado quando entrou em casa da sogra. “A minha filha estava a lavar a louça, ele estava sentado à mesa e eu vim para a rua com a minha tia para não estar a ouvi-lo.”

Não gostou da temperatura do vinho que lhe serviram com a refeição. Queria um copo de vinho frio, mas não havia. Cansada de ouvir a ladainha, a filha retorquiu: “Não queres este vinho, não bebes; come.”



Cansada de ouvir a ladainha,

a filha retorquiu:

“Não queres este vinho,

não bebes; come.”


De repente, Madalena
ouviu-a gritar.

“Oh mãe, ele está a bater-me!”





Madalena e a tia precipitaram-se para a cozinha. “Ele disse: ‘Foi ela que me bateu!’ E a minha mãe disse: ‘Desculpe, mas não foi ela que lhe bateu, você bateu-lhe, deu-lhe duas lambadas.’ Ele chamou a minha mãe de todos os nomes. Eu defendi-as. Ele bateu-me. Deu-me umas lambadas. Mas disse – diz – a toda a gente que nós é que lhe batemos.”

Não sossegou. Queria as chaves da carrinha. Como Madalena se recusou a entregar-lhas, deu um soco na mesa e acertou num queijo da serra, salpicando tudo em redor. “Chamou todos os nomes a mim e à filha.”

Só depois de limpar a cozinha, Madalena e a filha se meteram com ele na carrinha rumo a casa. “Chegou a casa, tirou-me a chave dos carros todos e foi para o baile até às três de manhã. Andou a dizer a toda a gente que a filha lhe rasgou a camisa, mas nas imagens vê-se que não está rasgada, está suja. A minha filha não se virou contra ele.”

No domingo, levantou-se, tomou banho, vestiu-se a rigor. Ao chegar à cozinha, deparou-se com o filho, que se inteirara do sucedido. “Nem o cumprimentou. O meu filho só disse: ‘Pai, venho aqui para falar contigo.’ Ele respondeu: ‘Não. Eu agora vou à missa.’ E foi para a missa. Ele comunga. E reza de olhos fechados. E Deus anda com ele. E o meu filho desde este dia não voltou a falar com o pai dele.”

Logo no sábado, a filha dissera a Madalena: “A mãe vai pedir o divórcio.” O filho já lhe dissera a mesma coisa anos antes, quando o militar tirara cinco mil euros da conta conjunta sem dizer para quê e destratara Madalena quando esta o questionara. “O meu filho disse: ‘Oh mãe, deixa-o. Porque é que hás-de estar com ele? Eu já tenho a minha vida. Eu ajudo a minha irmã. Não precisas dele para nada.’” Madalena encolheu-se. “Ao fim e ao cabo, eu não queria divorciar-me.”

A queixa


As discussões tinham-se tornado tão frequentes quantos os excessos de álcool. “Eu já ia de férias contra a vontade. As coisas corriam bem, mas depois, se tomava um copo a mais, discutíamos. Havia ali sempre qualquer coisa. O que vale é que eu não ligava e calava-me quase a tudo.”

Aquele sábado em casa da mãe ultrapassara todos os limites. Foi à casa da sogra contar-lhe. “Ela só faltou bater-me. ‘Divorciar, não. Eu sempre as levei e também aqui estou. E tu já alguma uma vez foste parar ao hospital?’ Disse isto na frente da minha filha. E depois veio a discutir o caminho todo até ao carro: ‘Vocês não a deixem divorciar-se. Se eles se divorciarem, eu não quero saber mais dela. Se eles se divorciam, deserdo-vos.”

Mais um mês passou na morada de família. “Não nos falávamos. Eu dormia com a minha filha. Nem ia para o quarto do meu filho, que estava vazio. Ele dormia sozinho. Eu e a minha filha comíamos as duas. Eu sempre pensei que ele pedisse desculpa à filha, já não dizia a mim, mas não.”

Uma noite, ligaram do lar. O pai de Madalena tinha morrido. “Estava a chorar no quarto quando ele chegou a casa. Não foi ver o que é que se tinha passado. Nem quis saber. Foi para a cama.” Madalena levantou-se cedo. “Fui buscar roupa preta ao quarto. Ele continuou na cama. Não disse nadinha. Eu fui-me embora. Fiquei na minha mãe essa noite. Ele não apareceu lá. Apareceu no funeral. Não falou a ninguém.”

Antes da missa do sétimo dia, Madalena recebeu uma mensagem áudio enviada por ele. Só à hora do jantar, deu por ela. “Aquilo era assustador. Ele tinha visto o inferno. Os meus filhos estavam lá. Eu estava lá. Dizia qualquer coisa assim: ‘Nossa filha bateu-me e tu, em vez de ficares do meu lado, ficaste do lado dela.’ Não dizia que me bateu. Não dizia que tinha batido na filha. Dizia que a filha lhe tinha batido.”

O filho reagiu logo: “Mãe, tu vais apresentar a queixa. Tu já não vais para casa. Ele não está bom.” Madalena concordou: “Eu não vou para casa esta noite.” No dia seguinte, logo pela manhã, foi apresentar a queixa, não na GNR, mas na Polícia de Segurança Pública.

Só voltaram a casa, escoltadas pela PSP, para pegar nalguns pertences. “Ficámos na minha mãe uma semana. Depois, como tinha de trabalhar na cidade, ficámos com uma amiga dois meses até conseguirmos alugar casa. Foi difícil, porque ele deixou-me a conta a zero.”

Nos últimos anos, parece que se tornou moda quem é alvo de queixa apresentar uma contraqueixa. Madalena não queria acreditar, mas essa estratégia seguida pelo marido fez estragos. Na troca de acusações, os sogros e a cunhada deixaram de falar com ela e com os filhos.

Uma suspensão provisória do processo

A PSP tomou conta da ocorrência, lavrou o auto de notícia, fez a análise de risco, encaminhou-a para o apoio à vítima, informou o Ministério Público. Não era só a palavra dela, da filha, do filho, da mãe, da tia.


Discretamente, a filha começara

a filmar momentos em que

o pai bebia demais e

desatava a insultá-las.


“Ele a discutir, a gritar,

a chamar nomes.
Eles viram tudo.”




Tomando consciência do que fora a sua vida de casada, Madalena sentia-se enganada, desrespeitada. E isso trazia-lhe uma cólera libertadora. “Eu há dias que tenho raiva. Há outros dias que tenho pena dele.”

Não o queria preso. Queria que ele reconhecesse o sucedido e se reabilitasse. Não hesitou quando o procurador lhe perguntou se queria ir a julgamento ou queria que ele devolvesse o dinheiro, pedisse desculpa e se submetesse a um tratamento. A filha estava mais reticente. “Ela queria que o castigassem bem castigado, mas depois aceitou [a suspensão provisória do processo, isto é, o encerramento do inquérito mediante o cumprimento de injunções e regras de conduta].”

No âmbito do processo disciplinar, Madalena foi ouvida pela GNR. “Falei com um rapazinho novinho, que não é de cá. O rapazinho disse: ‘Eu não o conheço, mas todos os meus colegas falam bem dele.’ Ele para as outras pessoas era bom. Mas muitos colegas dele assistiram a cenas de violência. Ele ultimamente, quando ia para algum lado e bebia, era capaz de me chamar nomes à frente de toda a gente. ‘Monte de esterco.’ ‘Filha da puta.’”

Surpreendia-a que depois de tudo o que acontecera continuasse uma figura de autoridade. “É o que mais me enerva”, dizia. Ele continua no trabalho dele. Ele continua com o mesmo ordenado.” Pelo menos, não andava armado. “Ele ficou sem armas. Sem a dele e sem as do posto. Ele teve sorte. Pouco antes, tinha deixado de fazer serviço na rua. Quis ir para a cozinha. Ele agora trabalha todos os dias das nove às cinco. Tem os fins-de-semana livres. É GNR, mas é cozinheiro.”

Explicaram-lhe que, a menos que haja uma condenação a mais de três anos de prisão, os processos disciplinares por violência doméstica tendem a esfumar-se em repreensões, multas ou suspensões de tempo variável. E desta vez não foi diferente: 18 meses de suspensão.

Espera que o tempo cure, mas não está descansada. “Nestas cabeças a gente não sabe a que vai. Ele ‘sério’ não faz nada, mas quando bebe não sei. Disseram-me que deixou de beber. Disseram-me que, assim que foi chamado a tribunal, deixou de beber. Ele sabe que, se bebe demais, perde a cabeça. Deve saber. Não sei.” Tantas vezes lhe pediu que deixasse de beber. “Ele dizia que era a última coisa que ia fazer na vida. Foi preciso eu sair de casa para ele deixar de beber. Se tivesse feito isso mais cedo, se calhar as coisas não tinham chegado a este ponto.”

* O nome foi trocado e locais e outros elementos foram omitidos para preservar a identidade da vítima

Quando o agressor de violência doméstica é de um órgão de polícia criminal

O PÚBLICO quer aprofundar a cobertura jornalista deste tema, no sentido de entender melhor como se processa a violência doméstica perpetrada por elementos dos órgãos de polícia criminal e como reage o sistema. Se já foi ou é vítima de violência doméstica por parte de um membro da PSP, da GNR ou da PJ e está disponível para entrevistas, escreva para acpereira@público.pt, com garantia de sigilo profissional.


A série “Quando o agressor de violência doméstica é PSP ou GNR” tem cinco capítulos. O próximo contará a história de Amália, que foi vítima de violência do então marido, um elemento da PSP que ameaçou matar a sua família.

Apoio a vítimas de violência doméstica CIG

Telefone: 800 202 148 | SMS: 3060

Email: violencia@cig.gov.pt

Linha de Apoio à Vítima (APAV)

Telefone: 116 006





Source link